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Videogame é coisa de menino?

Se você ouviu por aí frases prontas como “videogame não é brincadeira de menina”, saiba que não foi apenas você. Entramos no universo do games e conversamos com homens e mulheres para entender como esses estereótipos de gênero afetam a experiência do público feminino nesses espaços.


O videogame é uma forma de entretenimento que está presente na sociedade desde os anos 1970 e com o passar do tempo, nota-se que os avanços tecnológicos foram e continuam sendo essenciais para que a sua evolução seja constante. Como exemplos, podemos citar o aperfeiçoamento dos gráficos de jogos e a Realidade Virtual como mecanismo de jogo. Porém, o universo dos games não está isento dos estereótipos de gênero que tentam definir o que é "coisa de menina e coisa de menino", desta forma, uma brincadeira que poderia ser apenas divertida pode se tornar um ambiente propício para estigmatizar mulheres e favorecer homens.

Como os estereótipos de gênero começaram a marcar presença no universo do games

É inegável que a mídia teve um papel fundamental para estimular a sociedade a adquirir dispositivos que permitem o acesso aos jogos de videogame. Porém, infelizmente a propaganda utilizada para isso disseminou estereótipos de gênero sobre tecnologia e videogame ao espalhar a mensagem de que o videogame era “território masculino”. A propaganda abaixo de 1999 é um bom exemplo de como isso ocorreu:

Publicação de 1990 no Site Next Generation

No anúncio acima, a mulher tenta, sem sucesso, seduzir o seu parceiro que está focado em seu videogame. O slogan “We understand…”, com ênfase em “stand”, pode ser traduzido para “nós entendemos e te apoiamos”. Ou seja, a peça transmite uma visão completamente estereotipada dos gêneros masculino e feminino, em que a mulher representa um objeto sexual que atua como obstáculo para o interesse tecnológico do homem.

Apesar deste anúncio ter sido veiculado 22 anos atrás e de termos consciência de que algo com este cunho machista não seria facilmente tolerado na atualidade, os estereótipos de gênero estão enraizados na sociedade e seus efeitos podem se manifestar sutilmente na pós modernidade. Para exemplificar isso, utilizaremos um vídeo compilado de um “TikTok challenge” que vai de encontro a essa discussão.

Apesar da intenção do vídeo acima ser inocente e supostamente ter um "final feliz", a sua retórica é carregada de estereótipos de gênero, evidenciando que a percepção cultural intrínseca na sociedade de que o público-alvo dos videogames é o homem (em sua maioria), ainda é perpetuada pelos indivíduos e pode se manifestar de maneiras sutis, como nesse exemplo de 2020.

Esses e outros fatores foram contribuindo para a desigualdade de gênero no universo do videogame, prejudicando a experiência das mulheres e favorecendo a dos homens neste ambiente. As consequências deste fenômeno são inúmeras e se manifestam através de aspectos sociais, cognitivos e profissionais que serão discutidos ao longo deste estudo.

Desta forma, com o objetivo de entender a relação dos brasileiros com o videogame e explorar como os estereótipos de gênero contribuem para a desigualdade de gênero entre jogadores de videogame, a MindMiners realizou um estudo como 300 pessoas espalhadas por todo o Brasil, de todas as classes sociais e faixas etárias.

Quem joga mais? Menino ou menina?

As mulheres representam uma grande parcela dos jogadores de videogame, como mostra o gráfico abaixo sobre a distribuição de jogadores (videogame e computador) por gênero nos Estados Unidos de 2006 a 2020:

Fonte: Statista

Veja que apesar do número de homens ser maior que o de mulheres em todos os anos, há uma presença feminina bem forte que cresceu e oscilou por alguns anos. Já no Brasil, o cenário é um pouco diferente, uma pesquisa quantitativa, publicada em 2020, realizada com uma amostra de 5.830 pessoas do Pesquisa Game Brasil revelou que 53,8% dos jogadores que responderam o questionário são mulheres e 46,2% são homens, além disso, eles apontaram que a liderança feminina se mantém desde 2016.

Apesar desses dados serem reveladores, a forma como os jogadores de cada gênero interage com o videogame desde uma idade muito nova é bem diferente entre si e para começar a entender a relação que os jogadores da nossa amostra possuem com o videogame, abordamos em nossa pesquisa, elementos como o acesso, posse e tempo gasto em dispositivos para jogar videogame e foi observado que tais elementos foram mais associados aos homens do que às mulheres durante a infância, adolescência e atualmente.

Acesso ao videogame

O playstation, por exemplo, que é um dispositivo feito exclusivamente para jogar videogame, se manteve como mais acessível para os homens nos três períodos analisados.

29 % dos homens afirmaram que tinham um playstation em casa na infância, 43% na adolescência e 40% atualmente, já para as mulheres esses números são de 16%, 25% e 26% nos respectivos períodos.

Além disso, o mega drive que é um dispositivo com a mesma função do playstation, mas que marcou o início dos consoles de videogame, esteve muito mais presente nas casas dos respondentes do gênero masculino durante sua infância e adolescência.

18% dos homens afirmaram que tinham um mega drive em casa na infância, enquanto apenas 5% das mulheres também tiveram nessa época.

Por outro lado, as mulheres tiveram mais acesso ao computador que é dispositivo multitarefas, durante a infância e adolescência.

43% das mulheres declararam que tinham um computador em casa na infância e 73% na adolescência, já para os homens esses números são de 29% e 54% nos respectivos períodos.

Além disso, quando perguntados se costumavam frequentar “Lan Houses” para jogar videogame, os homens saíram na frente.

55% dos homens frequentavam Lan Houses para jogar videogame enquanto apenas 25% das mulheres tinham o mesmo comportamento.

Posse de videogame

O mesmo padrão se repete para a posse desses itens, a proporção de homens que se declararam como donos de consoles de videogame (playstation e xbox) foi muito maior do que a de mulheres nos três períodos de vida analisados.

80% dos homens que tinham um playstation em casa na adolescência afirmaram que eram donos do objeto, esse número cai para 40% para as mulheres. Atualmente esse número sobe para 87% para os homens e 49% para as mulheres, com o Xbox não é diferente, os homens totalizam 87% e as mulheres caem para 34%.

É válido destacar que atualmente os cônjuges das mulheres ganharam evidência como donos dos consoles presentes em casa.

33% e 25% das mulheres afirmaram que os cônjuges são donos do playstation e do xbox que possuem em casa, já para os homens, esses números caem para 7% e 3%.

Tempo gasto jogando videogame

Quando o assunto é o tempo consumido jogando videogame, os homens continuam saindo na frente nos três períodos analisados.

45% dos homens jogavam diariamente na adolescência, enquanto apenas 19% das mulheres tinham o mesmo comportamento.

Portanto, esses resultados mostram que o contato e a relação dos homens e das mulheres com o videogame é muito diferente entre si, uma vez que é demonstrado que eles possuem algumas vantagens sociais sobre elas que facilitam a sua interação com essa forma de lazer. Desta forma, eles superam as mulheres no acesso ao videogame, na posse destes itens e no tempo consumido jogando.

A sexualização de personagens femininas incomoda a quem?

Personagem Laura do Jogo Street Fighter V 

Como mencionamos no começo deste estudo, a mídia teve papel fundamental para ajudar a popularizar o videogame na sociedade, mas, fez isso enfatizando estereótipos de gênero. Por outro lado, essa não foi a única maneira utilizada para estigmatizar as mulheres no universo dos games, outra artimanha adotada, desta vez pela própria indústria dos games, foi a sexualização de personagens femininas para atender aos interesses do público masculino. Essa problemática é muito bem ilustrada no vídeo abaixo:

Sobre este assunto, a nossa pesquisa trouxe alguns insights interessantes. Após serem apresentados à duas imagens de capas da franquia de jogos Tomb Raider contendo a personagem feminina Lara Croft, uma considerada “não sexualizada” e outra considerada “sexualizada”, foi perguntado aos respondentes o quanto eles gostaram das capas:

É possível ver no primeiro gráfico que a primeira capa não dividiu opiniões entre os grupos comparados, porém, de acordo com o segundo gráfico, não se pode dizer o mesmo sobre a segunda capa que obteve um contingente muito maior de homens do que de mulheres afirmando que gostaram do que foi apresentado, o mesmo acontece ao analisarmos o percentual de pessoas que não gostaram que é significativamente maior entre as mulheres.

Em seguida, quando perguntados o que mais gostaram em cada uma das imagens, na primeira capa, as mulheres citaram muito mais elementos como roupas e representatividade feminina, enquanto os homens gostaram mais das armas/ferramentas que a personagem carregava consigo.

Por outro lado, após serem apresentados à imagem da capa de um jogo que possuía uma personagem feminina considerada sexualizada e responderem a mesma pergunta anterior, as mulheres se destacaram ao citar bastante a representatividade feminina como elemento que gostaram, já os homens gostaram mais do destaque dado à personagem e ao sentimento de nostalgia que o jogo os proporcionou por se tratar de um clássico, segundo eles.

Depois foi perguntado aos respondentes o que eles menos gostaram em cada uma das capas, a que continha a personagem sexualizada gerou muito mais insatisfação entre as mulheres do que entre os homens, ou seja, elas se incomodaram muito mais com o fato da personagem estar sexualizada, fato que não foi muito preocupante para os homens.

Quando questionados se as capas despertaram o seu interesse de jogar os jogos correspondentes, os homens demonstraram muito mais interesse do que as mulheres de jogar a capa que continha a personagem sexualizada.

61% dos homens sentiram interesse em jogar o jogo da capa com a personagem sexualizada, em contrapartida, esse número foi de 39% para as mulheres.

Esses resultados mostram que infelizmente a sexualização das personagens femininas em jogos não incomoda tanto os homens quanto as mulheres, evidenciando o quanto esses jogos foram feitos por e para homens, visto que eles se interessam muito mais em jogar com personagens femininas quando o corpo delas está em evidência. Apesar disso, só o fato de a capa conter uma personagem feminina foi suficiente para agradar um pouco as mulheres que gostaram da representatividade feminina nas duas capas, apesar de criticarem a sexualização da segunda, o que mostra como as mulheres buscam identificação em vários espaços, como o videogame, neste caso.

Apesar dos resultados anteriores serem desanimadores, a pesquisa mostrou alguns lados positivos, por exemplo, em perguntas sobre o quanto os respondentes concordavam com frases que reforçam estereótipo de gênero como “videogame não é para mulher” ou “meu pai achava que videogame era ‘coisa de menino’”, o nível de discordância das mulheres e dos homens foi bem alto, neutralizando minimamente a difusão dos estereótipos de gênero pelos participantes e dentro do ambiente familiar.

E quem sai perdendo?

A pesquisa também analisou as consequências da desigualdade de gênero no acesso ao videogame e da difusão de estereótipos de gênero neste ambiente. Os resultados desta seção estão totalmente de acordo com um problema bem preocupante que é o fato dos jogos de videogame dos gêneros de ação, estratégia e tiro aprimorarem aspectos cognitivos (percepção, atenção, associação, memória, raciocínio etc.) e serem jogados muito mais por homens do que mulheres.

Tanto na infância, quanto na adolescência e atualmente, os gêneros citados anteriormente foram e são jogados em sua maioria esmagadora por homens, enquanto isso, as mulheres se destacam por jogar os gêneros: simulação de vida, dança, música/ritmo e quebra-cabeças.

Ou seja, desde a infância as mulheres não costumam jogar muitos jogos que aprimoram áreas do cérebro muito úteis em ciências, matemática, tecnologia e engenharia, agora os homens, desde sempre possuem contato com esse tipo de jogo, isso pode colaborar sutilmente para aumentar a vantagem dos homens em ciências exatas, ramo que é ocupado atualmente por um número maior de homens do que mulheres. Isso fica ainda mais claro quando perguntamos quais são os gêneros favoritos dos respondentes.

O gênero quebra-cabeças apareceu em primeiro lugar para as mulheres com 18%, já para os homens foi aventura de ação com 13%.

Outro resultado preocupante que vai de encontro com dados apresentados no início deste trabalho é que um número muito maior de homens se considera “gamer”, tanto na adolescência, quanto na vida adulta. Esse termo é utilizado para identificar jogadores de alto nível que podem até competir em campeonatos de games. Ou seja, é um título muito mais associado aos homens, o que reforça o estereótipo de que o videogame é “território deles”.

32% das mulheres e 48% dos homens se consideravam “gamers” na adolescência, já na vida adulta esse número é de 25% para as mulheres e 42% para os homens.

Esses resultados vão de encontro a uma pesquisa quantitativa, publicada em 2020, realizada com uma amostra de 5.830 pessoas feita pelo Pesquisa Game Brasil que montou o perfil do gamer brasileiro:

Note que o “Casual Gamer” é composto majoritariamente por mulheres (61,9%), por outro lado, o “Hardcore Gamer” é o oposto, a maioria de jogadores são homens (61,3%). Outros dados interessantes que a pesquisa traz é que apenas 33,9% das mulheres costumam jogar no computador, já os homens representam 66,1% desta categoria, nos consoles não é diferente, somando 33,7% mulheres e 63,7% homens, elas só são maioria entre os jogadores de mobile, representando 70,5%, enquanto os homens representam apenas 29,5%.

O machismo se mostra o pior adversário das mulheres que jogam online

Além disso, outro fator que dificulta a vida das mulheres são os ataques que elas sofrem em comunidades de jogos online. Em 2020, inspiradas pela campanha #MeToo de 2017 em que atrizes e outras profissionais do audiovisual denunciaram casos de assédio no trabalho, gamers da plataforma de Streaming Twitch divulgaram vários relatos de assédio que sofreram de jogadores online, levando a plataforma a postar uma nota informando que iria averiguar todos os casos. Uma estratégia que algumas garotas encontraram para tentar escapar do assédio foi escolher um nome de usuário masculino ou sem identificação de gênero para jogar online.

Para entender um pouco mais sobre a experiência das mulheres na comunidade gamer online, perguntamos para as nossas respondentes que jogam ou já jogaram online se elas já utilizaram um nickname masculino ou sem identificação de gênero neste ambiente, quase metade delas já utilizaram.

Dentre as razões que utilizaram para justificar essa escolha, as que mais se destacaram foram: misoginia, assédio sexual e proteção da identidade.

33% das respondentes citaram misoginia, 23% citaram assédio sexual e 10% citaram proteção da identidade como motivos para manipularem o gênero nos nicknames de jogos online.

De acordo com elas, a manipulação do gênero no nickname evita ataques de gênero de jogadores masculinos dentro da comunidade de jogos online, além de proteger a sua identidade. Os comentários que mais chamaram a atenção foram:

“Porque quando os homens se irritam no jogo e veem que tem mulher, começam ‘puta, vagabunda, tinha que ser mulher, tem skin porque ganhou de macho né?’.” - 22 anos
“Para não ser pré-julgada, se jogasse mal era porque sou mulher, e se o contrário, uma exceção na terra. Sem identificação sou apenas mais um jogador, tanto faz ser bom ou ruim.” - 26 anos
“Quando homens vem um nickname feminino, ou eles dão em cima ou eles xingam e assediam a mulher, raramente um homem não vai ligar o fato de uma mulher estar no jogo com ele.” - 24 anos
“Porque a comunidade gamer é praticamente uma comunidade Neonazista onde eles desmerecem qualquer jogador que não seja homem.” - 26 anos

O relato das jogadoras é assustador devido a gravidade da situação, visto que a comunidade gamer claramente consiste em um ambiente extremamente hostil e tóxico para as mulheres a ponto de ser considerada uma “comunidade neonazista” por uma das respondentes. Ou seja, assédio e misoginia são fatores que contribuem imensamente para prejudicar a experiência das mulheres nesses espaços e contribui para as desencorajar a ocupá-los, aumentando ainda mais a desigualdade de gênero nos jogos.

Deixa as garotas brincar

Com base nesse estudo, é possível dizer que a experiência das mulheres em relação ao videogame foi e continua sendo afetada pelo estereótipo de gênero da tecnologia que foi disseminado na sociedade por muitos e muitos anos com a ajuda dos meios de comunicação. Desta forma, as mulheres têm mais dificuldade de acesso ao videogame e sofrem preconceito quando ocupam esses lugares, enquanto o homem quase é considerado um sinônimo de “gamer”.

São inúmeras as consequências da desigualdade de gênero no mundo do videogame para a construção de uma sociedade cada vez mais igualitária e justa, uma vez que as mulheres são privadas de explorar este universo com a mesma intensidade e liberdade que os homens, de modo que elas são prejudicadas em termos sociais, cognitivos e profissionais. Apesar desta relação ser sutil, ela não é invisível, em uma sociedade que as mulheres estão cada vez mais conquistando direitos e ocupando espaços de destaque, é intrigante que o estereótipo de gênero referente ao hábito de jogar videogame ainda persista tanto, isso mostra que todas as instâncias (indústria de jogos, comunidades de gamers, mídia etc.) envolvidas neste universo tem um espaço muito grande para promover a desconstrução de estereótipos enraizados na sociedade, um exemplo de atuação com esse objetivo (citado neste estudo) é a dessexualização da personagem Lara Croft da famosa franquia de jogos Tomb Raider, que nas versões mais recentes do jogo, apresentou uma figura feminina vestida adequadamente para o combate e sem realce aos detalhes do seu corpo. Outro exemplo é a campanha #MyGameMyName que tem o objetivo de combater o assédio online contra mulheres gamers.

De modo geral, os resultados deste estudo mostram diferenças marcantes na comparação das realidades feminina e masculina no mundo do videogame, evidenciando que a desigualdade de gênero neste universo está presente na realidade dos brasileiros. Portanto, esta é uma pauta que merece discussões futuras, visto que a gravidade da desigualdade de gênero no videogame alcança níveis que ainda não foram estudados em profundidade, como a relação entre o hábito de jogar videogame desde a infância e o caminho profissional traçado na vida adulta. É inegável a importância de falarmos mais e mais a respeito disso, visto que nunca houve um momento na história mais propício para discutir pautas sobre inclusão.

Embora este estudo enfoque as diferenças de gênero no que diz respeito à relação dos indivíduos com o videogame e faz comparações entre homens e mulheres, ele não discute as implicações de aspectos socioeconômicos no acesso à tecnologia para jogar videogame.